sábado, 22 de maio de 2010

CONTO DE VERÃO Nº 2: BANDEIRA BRANCA

===========================================================================================
Conto: CONTO DE VERÃO Nº 2: BANDEIRA BRANCA

Autor: Luis Fernando Veríssimo
 


Se você não conhece a marchinha de carnaval "Bandeira Branca", clique aqui e ouça
===========================================================================================


Ele: tirolês.
Ela: odalisca.
Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo.
Mas tinham só quatro anos e se entenderam.

No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro.
Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte.
Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia.
Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano.
Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
-Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora.
Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.



No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal!
 Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile.
E ela não apareceu.

Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma - disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto.
Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
- Nem me fala. E o toureiro?
- Aposentado.

A fantasia dele era de nada.
Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro.
Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros.
Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!" e todos caíram na risada.
Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se.
Foi procurar o Marcelão.

O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão.
O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma.

Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval.
Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro.

Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu.

Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela.
Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão.
Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro.
Ela encostando a cabeça no seu ombro.

Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval, por acaso, num aeroporto.
Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias".
Ele custou a reconhecê-la.
Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola.
A última coisa que ele lhe dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem, no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara..
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.
- Esqueci - mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?

E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Péricles. Será Péricles?
Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque?
Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu..




Um comentário:

Cláudio W.S.L. disse...

haha tu tem preguiça de ler o meu mas eu eu leio o dos outros ;PP
Esse ficou muito bom! Mas também, Veríssimo, não tinha como não ser.